Avançar para o conteúdo principal

A ajuda externa chinesa: um segundo Plano Marshall?

 



BÁRBARA SOFIA MALTEZ problematiza a política externa chinesa que tem usado a ajuda internacional como “arma” de soft power, na conquista dos corações e das mentes da sociedade internacional, bem como, na promoção do modelo chinês.




    Existem vastíssimos fatores que explicam o comportamento da política externa da República Popular da China (RPC), como a sua história, a cultura, a natureza do seu regime político. Para compreendermos o atual sistema de ajuda externa chinês é necessário retroceder ao legado de Mao Zedong. Durante as quezílias com Taiwan, os programas humanitários chineses tinham como objetivo que a comunidade internacional reconhecesse a República da China como país soberano. Isto deixou de ser uma prioridade quando, em 1971, a RPC foi reconhecida pelas Nações Unidas e, em 1979, quando Washington estabeleceu relações com Beijing. Na década de 90 a China criou dois bancos – o Export-Import Bank of China e o China Development Bank – que se afirmaram como pilares essenciais na ajuda externa e desenvolvimento financeiro chinês.

    Em 2000, numa tentativa de maior cooperação, a China realizou o primeiro Fórum China-Africa Cooperation. Outros importantes avanços foram o Belt and Road Initiative (BRI), em 2013, com o intuito de financiar projetos de agricultura, saúde e educação, e a International Development Cooperation Agency (CIDCA), em 2018, uma agência de ajuda bilateral. Estes dois programas pretenderam dotar as instituições internas de maior eficiência e concentrar, em apenas uma única agência, o programa de ajuda externa, assim como, separar acordos comerciais da assistência internacional.

    A política de ajuda externa chinesa está assente em Eight Principles que consagram a independência soberana, a não interferência na política doméstica de outros Estados, a igual cooperação, a ajuda humanitária de emergência, entre outros. No mapa 1 é percetível que a China desloca ajuda para zonas geoestratégicas – a presença na América do Sul, coloca-a perto dos EUA, em regiões da Ásia, interfere com a esfera de influência da Austrália e, em África, procura explorar um espaço em desenvolvimento e rico em oportunidades.


Mapa 1 - Países destinatários da ajuda externa chinesa, entre 2000 e 2014

    A pandemia colocou a China na vanguarda da assistência internacional, pelo que tem procurado apoiar vários países através do denominado mask diplomacy. A CIDCA anunciou que a resposta ao covid-19 irá ser “[the] most intensive and wideranging emergency humanitarian operation since [its]founding”. Podemos referir que, durante este período, o policy-making tem quatro objetivos. Em primeiro, é sem dúvida uma política de distração, numa tentativa de afastar os holofotes sobre o facto de ter sido o país de origem do vírus. Em segundo, pretende desviar as atenções da sociedade internacional sobre os crimes cometidos em direitos humanos, a nível interno. Em terceiro, visa assumir-se como global power, aproveitando o vazio deixado pela “liderança” de Trump. Por último, a China precisa que o mundo recupere para ela própria recuperar.

    Verificou-se grande resistência à mask diplomacy por parte de vários países que acusaram a China de doar materiais de pouca qualidade e fornecer ajuda médica, maioritariamente a países parceiros do BRI. O contexto pandémico tem ampliado a “lista” de críticas apontadas à ajuda externa chinesa – é acusada de ser um rogue donor: pela falta de transparência; pela aposta da via bilateral que pode potencializar a corrupção e evitar reformas democráticas nos países de destino da ajuda; mover-se por ambições imperiais e neocoloniais; praticar debt trap diplomacy, já que a maior parte do dinheiro é dado em empréstimos (com juros), pelo que, se os países não conseguirem pagar, a China procura ter acesso à exploração de recursos naturais. O autoritarismo e segredismo interno determinam as relações da China com outros atores.

    Em resposta a estas acusações, os líderes chineses têm procurado ser mais transparentes e apostar na via do multilateralismo. Contudo, apesar de ser notável a publicação do terceiro white paper, onde constam os movimentos e os avanços alcançados em ajuda internacional nos últimos anos, a China tem ainda um longo caminho a percorrer para resolver estes problemas. Aliás, outro dos grandes obstáculos que as lideranças chinesas enfrentam são as contradições entre discursos e ações, salientes durante a pandemia – afirmando que a ajuda humanitária é pautada por princípios de solidariedade e de respeito pela vida humana, contudo, internamente, são tudo menos benevolentes.

    A ajuda externa chinesa pode ser compreendida pela ótica realista, que afirma que os agentes agem em defesa dos seus interesses nacionais, o que proporciona a competição incessante por influência. Em oposição, também o liberalismo explica que os atores conseguem cooperar e conjugar vários interesses nacionais. As práticas sociais e políticas, as ideias, os símbolos e a ideologia chinesas guiam a sua ação externa, pelo que, o construtivismo tem um papel fundamental para a sua compreensão.

    Concluindo, a pandemia poderá vir a gerar constrangimentos e oportunidades à China. Recuperar a sua economia significará um maior investimento doméstico do que internacional. No entanto, prevê-se o aumento do orçamento na área do apoio externo, já que, as reformas atuais, são um símbolo da emergência da China como grande potência mundial neste âmbito, assim como prova da sua capacidade em recorrer ao soft power e smart power. A China poderá emergir desta crise com um maior poder, e dessa forma, mais difícil será às democracias alterarem o panorama internacional. A política de ajuda externa chinesa pode comparar-se ao Plano Marshall pelos intuitos que tem na sua origem.


Fonte da imagem de capa: https://www.chinausfocus.com/foreign-policy/chinese-foreign-aid--why-all-the-secrecy

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Portugal e a extensão da ZEE, os novos descobrimentos ou o novo mapa cor-de-rosa? por Filipe Galvão

  Filipe Galvão analisa a  tentativa de expandir a Zona Económica Exclusiva (ZEE) por parte de Portugal e da sua diplomacia, como forma de aumentar a sua influência geopolítica através da via legal e da política externa, será aceite pela comunidade internacional? Até porque como afirmou outrora Napoleão “A política dos Estados está na sua geografia”.

A importância das relações de Portugal com os PALOP e com a CPLP no panorama internacional

FILIPA RIO MAIOR  aborda as relações de Portugal com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e a importância que as mesmas tiveram (e ainda têm) no panorama internacional.     

O Antagonismo da Água: uma arma de guerra ou um instrumento para a paz? A importância da diplomacia

  TÂNIA MELRINHO  demonstra que as tensões e desacordos pelo acesso à água continuam a crescer a um ritmo célere, ao mesmo tempo que a escassez da água se mostra como uma ameaça, a diplomacia da água e a sua mediação passam a assumir um lugar primordial na política externa.