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A evolução da política externa da índia: Da doutrina do não-alinhamento à aposta no soft power

 

ANA GIL apresenta as alterações na Política Externa da Índia resultantes da eleição de Narendra Modi e afirma que a recente política interna do país terá impacto no seu soft power.

A eleição de Narendra Modi, em 2014, marcou uma mudança de paradigma na forma como a Índia se posiciona na comunidade internacional. O agora reeleito Primeiro-Ministro veio transformar por completo a política externa do país.

Durante a guerra fria e décadas que se seguiram, a política externa da Índia baseou-se numa política de não-alinhamento. Esta doutrina teve a sua origem exatamente na guerra fria, perante a reação de um conjunto de Estados que decidiu não se tornar aliado de nenhum dos dois blocos de poder – EUA e URSS. A ideia era a de que a não-aderência ao lado de uma das superpotências poderia proporcionar uma melhor estabilidade no sistema internacional, bem como um cenário mais pacífico.

Podemos identificar, na doutrina do não-alinhamento e na política externa da Índia sob a mesma, uma base teórica realista . Tal como o não-alinhamento, o realismo foi muito adotado no âmbito da compreensão das relações internacionais durante a guerra fria. Esta perspetiva teórica encara as relações internacionais como uma luta por poder e perceciona estes conflitos como algo negativo, tendo uma visão pessimista sobre a resolução dos mesmos. Assim, um Estado com uma visão teórica realista sobre a política externa decidir-se-á por uma política de não-alinhamento no período da guerra fria, por acreditar que um mundo mais estável e pacífico é mais acessível num contexto em que duas potências não lutem por poder.

A política externa da Índia, durante décadas, foi estável e a alteração de partidos no poder não se refletiu em alterações nas relações externas. Tudo mudou em 2014, com a chegada de Narendra Modi ao poder como Primeiro-Ministro. Foi então que sucedeu uma mudança estrutural na política externa do país: a doutrina do não-alinhamento foi abandonada e Modi redefiniu o posicionamento da Índia nos assuntos internacionais.

Com efeito, tem vindo a estabelecer-se alguma proximidade entre a Índia e os Estados Unidos, sendo um exemplo dessa relação o facto da Índia importar grande parte do seu armamento aos EUA e o facto destes a considerarem um importante aliado na área da defesa.

Outro indicador da mudança de paradigma no posicionamento da Índia no sistema internacional foi a elevada quantidade de visitas diplomáticas realizadas por Narendra Modi: durante o seu primeiro mandato, Modi realizou cerca de trinta e cinco visitas a outros Estados. Nenhum outro Primeiro-Ministro na História do país realizou tal feito

O projeto do novo primeiro-ministro para o país, a nível interno e externo, contou com a aprovação dos cidadãos e, em 2019, este foi reeleito, num sufrágio que durou 6 semanas e contabilizou uma participação de 600 milhões de pessoas, numa demonstração clara da dimensão populacional desta potência.

Uma das mudanças na política externa de Modi, face ao histórico dos líderes anteriores, é a escolha de um tecnocrata Subrahmanyam Jaishankar – como ministro dos negócios estrangeiros, neste seu segundo mandato. Até ao momento, esta pasta tinha sido sempre entregue a aliados do Partido que estivesse no poder. Esta decisão configura-se como um ato simbólico importante: ao escolher um veterano da política externa, Modi demonstra a sua convicta intenção de perseguir e priorizar os seus objetivos relativos às relações externas da Índia.

Outra das formas como o atual Primeiro-Ministro alterou a política externa da Índia foi através do reconhecimento dos benefícios do Soft Power. A Índia é a segunda maior diáspora do mundo e Narendra Modi pretende utilizar esse facto como elo de ligação com outros países.

O soft power, como definido por H. H. S. Viswanathan num artigo publicado no site do ministério dos negócios estrangeiros da Índia, é a habilidade de um Estado influenciar o comportamento de outro, de modo a obter os benefícios que pretende. Enquanto o hard power é associado a poder militar, o soft power é associado a aspetos intangíveis: com soft power, outros Estados alinham as suas atitudes aos nossos interesses porque têm uma imagem favorável sobre nós. Assim, a busca por soft power passa por medidas centradas nas pessoas e não no poder militar.

Esclarecida a definição de soft power, podemos compreender como a Índia tem imenso potencial para beneficiar do seu soft power, dada a sua riqueza histórica e cultural e dada a sua dimensão demográfica.

Foi a noção deste potencial – creio – que levou Narendra Modi a reunir esforços diplomáticos e monetários para a criação do Dia Internacional do Yoga, celebrado a 21 de junho, desde 2015.  Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a celebração internacional do Yoga é mais do que a celebração da saúde física e mental: é, também, um marco para as relações externas da Índia e para a afirmação do seu soft power. Em 2016, por exemplo, a comemoração deste dia resultou na concentração de 15 000 pessoas em Nova Deli, entre as quais 70 diplomatas de 35 Estados, numa demonstração de Yoga.

No âmbito destes esforços relativos à celebração internacional do Yoga, podemos identificar uma base teórica construtivista, na medida em que Modi reconhece o potencial do campo das ideias na promoção do poder da Índia; mais especificamente, reconhece o potencial da identidade cultural do país na procura pela maximização do soft power.

Não obstante, importa relembrar que soft power não se trata apenas de dar a um Estado uma imagem favorável: a aposta na imagem exterior não terá sucesso se não for acompanhada por uma boa imagem interna. Como tal, situações recentes relativas à política interna da Índia têm vindo a comprometer o seu soft power. A título de exemplo, quando chegar o Dia Internacional do Yoga este ano, dificilmente o mundo olhará para a Índia com os mesmos olhos que há um ano, uma vez que terá em mente os protestos recentemente levados a cabo por agricultores insatisfeitos com decisões do governo, no âmbito da política interna. 

Deste modo, o caso da Índia é um bom exemplo de como a política interna e externa de um Estado se influenciam mutuamente. A imagem que o mundo tem de um Estado dependerá muito das suas decisões internas, o que, por sua vez, definirá a forma como aceita relacionar-se com o mesmo.

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