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Rússia e Geórgia: Política de "Dividir para Reinar"

 


FILIPA GOARMON PALMA analisa o conflito no Cáucaso que tem levado a tensões entre a Rússia e a Geórgia.  

                        Ainda a Geórgia fazia parte da URSS e já os oficiais soviéticos alertavam para a iminência da independência e autodeterminação georgianas. Tornava-se imperativo salientar a importância estratégica do controlo sobre as suas regiões autónomas e alimentar sentimentos regionais-nacionais. 

            Pouco antes da queda da URSS, a Geórgia era terreno fértil para nacionalismos que procuravam uma identidade nacional. Em 1990, legitimado por eleições multipartidárias e um referendo popular, o governo Georgiano declarou a independência do país e declarou que as forças militares soviéticas eram ocupantes.

            No entanto, duas das regiões autónomas, a Ossétia do Sul e a Abecásia quiseram separar-se da recém-independente Geórgia, o que resultou em conflitos armados que duraram até 1992-1993. Aproveitando a instabilidade civil, a Rússia apoiou política e militarmente os movimentos separatistas e ajudou na deposição do governo georgiano impedindo-o de controlar os territórios.

            Embora os acordos finais tivessem consolidado o papel da Rússia enquanto garante da paz e da segurança nesses territórios, a Geórgia nunca aceitou esta resolução. Pelo contrário, acusou a Rússia de desrespeitar a desmilitarização exigida nos acordos e denunciou a sua política de “passportização”. Tiblissi (capital da Geórgia) encarava a gradual ocupação dos territórios como um “dividir para reinar” e, a fim de resgatar a sua cultura e identidade, quis impedi-lo.

            Após a Revolução Rosa em 2003, uma revolução vista pelo ocidente como uma promoção da democracia, Mikheil Saakashvili tornou-se presidente e iniciou o resgate das regiões separatistas. Saakashvili iniciou um programa de expansão e modernização militar e destacou forças militares e policiais para as fronteiras. Em 2008, o investimento na área militar tinha sido de tal ordem que, em caso de hostilidades, a Rússia não teria a vida facilitada. As elites russas, por seu lado, não iriam permitir que um político com apoio americano viesse acabar com o que ainda restava da influência russa.

            Em Agosto de 2008 rebentaram tensões que tinham vindo a crescer entre os dois Estados, dando origem a uma guerra de cinco dias. Nesta guerra digladiavam-se duas forças: o revanchismo de Putin e a geopolítica da Rússia, e a ambição de Saakashvili em recuperar as regiões separatistas.

            Robert M. Gates, então Secretário de Defesa dos EUA, recordou que o “impetuoso Saakashvili” tinha caído na armadilha dos russos, mas que ambos eram responsáveis pelo conflito. Nesta breve, mas brutal invasão as força russas deram o “assunto” por terminado em menos de uma semana. 

            No fim, a Rússia reconheceu a independência da Abecásia e da Ossétia do Sul e tem apoiado os governos de facto até aos dias de hoje.

            Apesar dos esforços para a “normalização” das relações entre os dois países e as iniciativas de Genebra para a promoção do diálogo, a Geórgia ainda vê o apoio da Rússia aos governos de facto como uma violação da soberania nacional enquanto que a Rússia exige limitações ao acesso da Missão de Vigilância da União Europeia às regiões separatistas. 

            Atualmente, deparamo-nos com uma política de fronteiras marcadas por uma expansão insidiosa em território georgiano. Este processo envolve não só a integração das instituições locais dentro das estruturas russas, como também a fortificação e vigilância das fronteiras e o impedimento do regresso a casa de milhares de georgianos desalojados. Muitos habitantes perderam o acesso a bens e estão impedidos de ver a sua família. Outros, os que se aproximaram da fronteira, são detidos ilegalmente, sequestrados ou mortos (pelos separatistas apoiados pela Rússia) e mostram sinais de abusos. Ainda outros, necessitados de cuidados médicos urgentes, não obtiveram permissão para ser evacuados e acabaram por morrer. São razões étnicas que se escondem por detrás destas medidas.

            A política externa pró-ocidental da Geórgia é uma das razões que explicam a continuada ação russa no Cáucaso. No entanto, apesar dos exercícios militares e do Acordo de Associação com a EU, as perspetivas de adesão da Geórgia à OTAN têm fracas probabilidades se os dois conflitos territoriais continuarem. 

            Nos dois últimos anos, temos observado uma série de ataques de Moscovo à Geórgia: ciberataques, desinformação sobre a COVID e propaganda contra o sistema de saúde pública georgiano - especificamente o Lugar Center.

            Em finais de janeiro de 2021, o Tribunal Europeu para os Direitos do Homem acusou a Rússia de crimes cometidos nas regiões separatistas da Geórgia após a guerra de 2008. No entanto, este Tribunal não lhe imputou a responsabilidade das violações cometidas durante os combates, uma vez que não foi provado que esta exercesse um “controlo efetivo” sobre a zona ou qualquer outra forma de "autoridade e controlo de agentes do Estado" sobre indivíduos. Decidiu, porém, que a situação se alterou após a confrontação devido à forte dependência que ainda se observa sobre as autoridades da Ossétia do Sul e da Abecásia por parte da Rússia. 

            O Tribunal determinou ainda que as hostilidades eram uma violação do Acordo de Cessar-Fogo de 2008, uma vez que soldados das forças da Ossétia incendiaram casas e aldeias georgianas e ameaçaram de morte os seus habitantes. 

            As ordens dadas ao exército russo eram de proteger a população, manter a paz e aplicar a lei no terreno, ordens estas que não foram cumpridas. Não só não levaram a cabo investigações eficazes sobre os alegados crimes de guerra e abusos dos direitos humanos, como um ataque com um projétil em Gori foi atribuído à Rússia. Os russos alegam que foi o exército georgiano quem bombardeou o seu próprio povo de modo a implicar Moscovo.

            Deste modo, e mesmo não tendo sido aplicada qualquer sanção, será sempre uma vitória simbólica e histórica para Tiblissi, que reforça o seu argumento de que o seu vizinho a norte é um invasor.

             Moscovo optou por enfatizar a absolvição da Rússia no que respeita a crimes cometidos durante a guerra, salientando que o Tribunal tinha contrariado a afirmação oficial georgiana de que a Rússia iniciara a guerra. Em abono da verdade, o primeiro ataque fora, efetivamente, georgiano.

            A ocupação de um país pequeno por parte de um mais poderoso é, já por si, considerada uma manifestação de globalização agressiva. Tem, no entanto, muito mais que se lhe diga: a cultura e a identidade dos georgianos pode estar em perigo, assim como a agenda pró-ocidental da Geórgia. Este país e as regiões separatistas têm de chegar a um entendimento quanto ao seu estatuto, e terem a inteligência de reconhecer que é superior o que os une do que o que os separa. Será, ainda que remotamente, a única maneira de a Rússia se afastar desta questão.




Fonte da imagem: Wikipédia

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