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As multinacionais e a ode ao Capitalismo

 




    BÁRBARA SOFIA MALTEZ defende que as multinacionais têm um papel relevante na construção do sistema internacional, o que torna imperativo analisar a sua influência na política externa de outros atores, nomeadamente dos Estados.

   Atualmente, advoga-se que existem empresas mais poderosas que alguns Estados, devido ao seu carácter transnacional e aos elevados recursos (financeiros e humanos), que lhes permite exercer grande preponderância sobre a estrutura mundial. Marcando presença em várias regiões do globo, estas multinacionais condicionam a ação dos Estados e das Organizações, pelo que, três académicos, introduziram o termo Metanational, para designar a supremacia destas empresas nas relações internacionais.

  A afirmação do status quo das transnacionais permite uma ação versátil e multidirecionada, conciliando cooperação, competição e conflito. Recorrem ao uso tripartido de soft power, através do lobbying, políticas de cooperação económica, apoio técnico, parcerias locais, mas também comunicados, relatórios anuais e campanhas públicas; de smart power, pois as ações são tomadas com inteligência, procurando maximizar os lucros e, finalmente, de hard power, através da coerção e ameaças.

    Nos países emergentes tem-se registado um aumento da instalação de empresas multinacionais, incentivado pelas isenções ficais e escassa regulação no âmbito ambiental e laboral. A expansão daquelas gera uma subordinação dos agentes estatais, que se revelam impotentes face ao seu poder económico. Por outro lado, capitalizam as crises e os problemas existentes nestas regiões, conduzindo ao agravamento das disparidades socioeconómicas.

    Observemos um caso prático:

   No estado norte-americano de Michigan, os habitantes da cidade de Flint e Evart enfrentam um adversário comum: a Nestlé. Esta multinacional nasceu na Suíça, no ano de 1866 e, atualmente, é considerada a maior empresa de alimentos do mundo, com representação em 187 países e dona de 2 mil marcas. Contudo, a sua história é marcada por polémicas. A controvérsia em torno do leite artificial, em que a empresa procurou vender este produto, mais caro e menos nutritivo que o leite materno, nos países em desenvolvimento, resultou na morte de milhões de crianças – a água usada para dissolver o produto estava, na maioria das vezes, contaminada. Além disso, a Nestlé é acusada de perpetuar o trabalho infantil e contribuir para a destruição de florestas. Em 2020, de acordo com o relatório Break Free From Plastic, foi considerada a terceira maior poluidora de plásticos do mundo, apesar das promessas em reduzir a sua pegada ecológica.

    Mas voltando à história sobre a cidade de Flint e Evart. Desde 2004 que o sistema de água municipal de Flint não garante um acesso seguro a este recurso. Nesta região, o estado de Michigan permite à Nestlé extrair 1.8 milhões de litros das nascentes da cidade. Na verdade, os cidadãos pagam, mensalmente, mesmo sem consumirem água da rede, uma fatura mais elevada do que a Nestlé é obrigada a pagar por ano. Para garantir o apoio da comunidade atualizaram infraestruturas e prometeram empregar pessoas, mas o que à primeira vista parece ser um ato humanitário, na verdade, é uma ação com segundas intenções. Assim, o que esta empresa faz é explorar um recurso público para encher garrafas de plástico, ganhar milhões de euros com a sua venda, enquanto as populações não têm água da rede para consumo.

    Também no mercado africano a Nestlé viu um espaço estratégico e rentável para exportar as suas garrafas de água, já que, a incapacidade de os governos garantirem, de forma segura, o fornecimento de água a toda a população, potencializou a ação destas empresas que, atualmente, lucram milhões com esta crise. O consumo em massa da água engarrafada criou uma nova crise – uma crise de lixo.

    Enquanto tudo isto acontece no mundo, as Nações Unidas, que pautam a sua ação de acordo com objetivos para o desenvolvimento sustentável, sendo o número um a “erradicação da pobreza” e o número dez a “redução das desigualdades”, revelam-se incapazes de atuar contra. Teoricamente, os Estados-Membros têm a obrigação de cumprir essas metas, contudo, a dependência financeira da ONU não lhe permite agir de forma mais efetiva e profunda e os seus esforços têm-se revelado escassos. Assistimos a uma certa inércia e acomodação dos Estados porque os interesses capitalistas falam mais alto. A cooperação através de organizações como o World Bank, a ONU (e as suas agências) e a União Europeia, por mais "defeitos" que estas instituições tenham, é fundamental para mitigar os problemas globais porque dominam uma política externa mundial. 

     A perspetiva realista explica os “instintos” materialistas das multinacionais, a procura da maximização das suas necessidades económicas, competindo continuamente com outros atores. Por outro lado, a visão liberal é fundamental para estudar o comportamento das transnacionais. Esta teoria reconhece a existência de atores para além do Estado que, proporcionada pelo processo de globalização, assiste-se ao surgimento de novos atores internacionais, na competição global e, que de certa forma, fragilizam a soberania estatal. Na relação biunívoca de influência entre atores/estruturas, podemos afirmar que as multinacionais, enquanto atores, têm grande influência sobre o sistema internacional, e a opinião pública, como estrutura, que, cada vez mais sensibilizada em matérias de direitos humanos e problemas ambientais, escrutina e condiciona a ação do agente.

    Concluindo, a expansão worldwide de empresas tem exponenciado o aprofundamento das clivagens socioeconómicas entre países e dentro das suas sociedades. Enquanto uma pequena elite beneficia das oportunidades da “era” da globalização, outros são explorados e deixados para trás nesta competição incessante.



    

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