FILIPA GOARMON PALMA expõe a relação historicamente atribulada entre um país perpetrador e um país vítima em que ambos discordam, até aos dias de hoje, sobre reparações em termos de Justiça Transicional.
A relação entre a política externa da República da Coreia e do Japão é um exemplo de como as memórias persistem durante muitas gerações, especialmente se forem traumáticas.
Para compreender este caso de estudo temos de recuar até à ocupação colonial japonesa da Península Coreana, que se prolongou ao longo de 35 anos e acabou com o final da II Guerra Mundial.
Durante o domínio colonial, o povo coreano – entre outros povos asiáticos - foi alvo de diversas atrocidades perpetradas pelo Império do Japão, nomeadamente, a escravatura sexual e o trabalho forçado. As dezenas de milhares de mulheres e raparigas adolescentes que foram traficadas numa rede extensiva de bordéis, que foram violadas, espancadas e mortas pelo Exército Imperial Japonês ganharam o surreal nome de “Comfort Women”. Por sua vez, os trabalhadores forçados passaram fome e trabalharam até à exaustão para sustentar a máquina de guerra do Império. Estes dois exemplos de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade marcaram o sentimento nacional coreano e alimentaram uma profunda desconfiança relativamente aos japoneses até aos dias de hoje.
Apesar de formarem uma aliança trilateral com os Estados Unidos da América, as atuais relações entre os dois Estados estão intimamente ligadas às resoluções de Justiça Transicional (JT). JT pode ser definida como um conjunto de medidas concebidas para lidar com sociedades pós-conflito ou pós-ditatoriais e deve ter como principal objetivo acabar com a impunidade legal e social. Almeja a preservação e manutenção da paz, a busca pela justiça e a reconciliação entre vítimas e perpetradores. Os seus objetivos são atingidos através de diversos mecanismos: medidas de reparação patrimonial ou simbólica, medidas retributivas ou jurídicas e medidas de reconciliação.
De acordo com a narrativa nipónica, já houve redenção suficiente. Por sua vez, os sul-coreanos consideram que ainda não foram suficientemente ressarcidos pelas crueldades que sofreram.
O primeiro acordo entre os dois países, em 1965 - vinte anos após o final da II Guerra Mundial -, teve uma natureza puramente económica e não teve em conta o contexto social. Este acordo iniciou as relações bilaterais e estabeleceu o padrão para futuros acordos que, desde então, têm sido reparações, maioritariamente patrimoniais e simbólicas, por parte do Governo Japonês, como sejam compensações monetárias ao Estado ou criação de fundos para as vítimas.
No entanto, a existência de reparações simbólicas não deverá excluir mecanismos de reconciliação como pedidos de desculpas públicos, admissões de culpa e confissões. Apesar dos esforços para compensar financeiramente as vítimas, todos os pedidos de desculpa (com manifestação de remorsos e os mais sinceros sentimentos) caem por terra quando Tóquio falha em “reconhecer os factos e aceitar a sua total responsabilidade enquanto Estado-perpetrador”.
Um reconhecimento pleno e sincero de culpa permite que os estados que cometeram crimes se possam libertar do seu passado agressor e que as vítimas encontrem, finalmente, um certo consolo. Pelo contrário, a impunidade mantém latentes as injustiças passadas. Muitos coreanos e, principalmente, as vítimas (principais interessados nos moldes em que esse pedido de desculpa é feito) acham que deve ser o Imperador Japonês a pedir desculpa às vítimas, uma vez que foi durante o Império do seu avô que as atrocidades foram cometidas. O governo japonês, porém, reitera que tal é impensável.
As reparações de Justiça Transicional devem não só preservar a “living memory of the dead”, como “acknowledge the sacrifice of victims”. O facto do governo japonês se opor à construção de memoriais e monumentos em homenagem do sofrimento das vítimas denota uma falta de arrependimento, uma ausência de contrição por parte de Tóquio e um insulto à História e às vítimas. Da mesma forma, muitos coreanos acusam o governo japonês de corrigir, omitir e reescrever a história colonial japonesa nos seus livros escolares, fazendo com que certos factos caiam no esquecimento.
Só em 1993 (Kono Statement), após uma grande atenção internacional para com esta questão, é que o governo japonês (representado pelo Primeiro Ministro Hosokawa Morihiro) corrigiu, pela primeira vez, a retórica vigente de que as “Comfort Women” se prostituíam por sua livre vontade. Ainda que um avanço, esta contrição apenas reconheceu uma responsabilidade “direta ou indireta” ao exército japonês na captura e coação de mulheres para as redes de escravatura sexual.
Existem breves momentos de paz entre Estados como sejam a formação de uma aliança de partilha de informações de segurança, o General Security of Military Information Agreement (GSOMIA). Porém, não se revela suficiente para estreitar as relações entre as duas nações, tendo a Coreia ameaçado retirar-se em 2018 após a intenção japonesa de retirar a Coreia do Sul da sua lista de parceiros comerciais. A atitude nipónica veio em consequência da dissolução de um acordo (fundos de cuidados médicos para as “Comfort women”) a pedido das vítimas por parte de Seoul, e, também, por uma ordem do Supremo Tribunal Sul Coreano que exigia compensações de empresas japonesas a antigos trabalhadores forçados.
Recentemente, já no início deste ano, deu-se um outro grande golpe nas relações, quando um tribunal sul coreano determinou que o governo japonês pagasse quantias monetárias a 12 mulheres sul coreanas representadas pelo Conselho Coreano de Justiça e Memória para as Questões da Escravatura Sexual Militar pelo Japão. Na base desta acusação está o revisionismo constante da história colonial japonesa e os traumas psicológicos causados às vítimas. O Japão declarou que não o faria, “ao abrigo do princípio de isenção de soberania à luz do direito internacional". Seoul, por seu turno, anunciou que iria defender as vítimas, pois o caso envolvia "atos anti-humanitários sistematicamente planeados e perpetrados pelo acusado".
O padrão de política externa “apology-then-backlash” não ajuda a que haja uma opinião coreana positiva sobre o Japão nem favorece as relações bilaterais. Enquanto que o Japão tem tentado estabelecer uma relação orientada para o futuro, a Coreia do Sul não parece disposta a dar esse passo. Na perspetiva sul coreana, as constantes afrontas ao orgulho e sentimento nacional deixam poucas opções senão criticar abertamente o Governo de Tóquio.
A prossecução de uma narrativa de “truth-telling”, de não esquecimento como sejam o incentivo à memória através de monumentos - por razões éticas e de respeito às vítimas - e que não tenha medo de enfrentar as atrocidades passadas através de processos judiciais, parece ser o principal passo no caminho de uma reconciliação, paz e estabilidade.
Fonte da imagem: CoinDesk
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