Henrique Coelho alerta para a forma como um problema global de saúde pública poderá estar prestes a tornar-se numa “arma diplomática” no tabuleiro de xadrez que é o sistema internacional.
Uma estranha troca de prisioneiros, depois de uma cidadã
israelita ter sido detida por atravessar ilegalmente a fronteira entre
Israel e Síria desperta-nos para a nova realidade diplomática. Oficialmente, teria
sido uma simples
troca de prisioneiros entre uma israelita e dois pastores sírios, no entanto,
uma fonte israelita alegadamente envolvida na troca apresenta outra
versão: o governo israelita terá chegado a acordo com o governo de Bashar
al-Assad, líder da Síria, através de negociações mediadas pela Rússia. O que
esse acordo tem de inédito é o facto de o governo de Netanyahu se comprometer a
pagar mais de um milhão de dólares à Rússia, para que esta enviasse centenas de
milhares de vacinas para o país liderado por Bashar al-Assad.
O episódio acima referido levanta diversas questões. Não
obstante, importa relembrar que Israel, como Estado que leva neste momento a
cabo uma ocupação
militar sobre territórios reconhecidos
pela ONU, tem vindo a recusar dar vacinas aos mais de quatro milhões de
palestinianos que vivem nesses mesmos territórios ocupados. Sobre este tema,
recomenda-se a leitura do artigo
escrito por Renata Rocha, que nos dá conta da forma como Israel tem vindo a
desencadear um apartheid sobre os palestinianos, especialmente no que concerne
à problemática da COVID-19. Há, até, uma certa ironia quando a comunidade
internacional apregoa o exemplo de Israel no combate à pandemia, e à forma como
o Estado israelita tem estado na linha da frente no que toca à vacinação dos
seus cidadãos, ao mesmo tempo que parece esquecer a situação de milhões de cidadãos sem
uma estrutura estatal que lhes garanta cuidados de saúde contra o coronavírus.
Se por um lado, as negociações mediadas pela Rússia têm algo de curioso, tendo
em conta que falamos de dois Estados inimigos que
chegaram a acordo, e uma vez que há várias questões relacionadas que estão
ainda por responder, outros casos em que verificamos a “diplomacia das vacinas”
praticada por Israel são bastante claros.
Fruto do stock
excedentário que Israel tem em suas mãos, o Estado hebraico tem vindo a
aproveitar essa situação para influenciar a relação que outros países têm com
Israel. Em causa estão quinze países que fazem parte de uma lista
de países a quem Israel já enviou vacinas, ou pretende ainda enviar. Importa usar
como exemplo a Guatemala, que recebeu
cerca de cinco mil vacinas, tendo sido o segundo país a mudar
a sua embaixada de Telavive para Jerusalém, assim como as Honduras, Estado que
planeia
fazer o mesmo. Exemplos de países
com quem Israel não manteve quaisquer relações diplomáticas, muito por
questões relacionadas com a ocupação dos territórios palestinianos, parecem
estar progressivamente a normalizar as suas relações, certamente influenciados pela
apelativa troca que está em cima da mesa. Esta lista não se fica pela América Latina ou África,
sendo que a República Checa também estará à espera de receber as vacinas adquiridas
por Israel à Moderna. Neste caso, o Estado-membro da União Europeia prometeu
“apenas” abrir uma representação em Jerusalém, mantendo a embaixada em
Telavive, pelo menos por enquanto. Este assunto não é de menosprezar, tendo em
conta que existe uma disputa
histórica por Jerusalém, e Israel, com a sua “diplomacia das vacinas”, pode
estar em vias de reacender conflitos que, de certa forma, têm vindo a ser apaziguados
nos últimos anos.
Assim, interessa à comunidade internacional prestar especial atenção ao que se
tem vindo a passar em Israel, não obstante o facto de não ser caso único. Reconhecendo
que esta nova forma de fazer diplomacia tem a vantagem de afastar a componente
bélica no relacionamento entre diferentes Estados, não deixa de ser verdade que
a mesma levanta questões
éticas que não são de desvalorizar. Porque o que está em causa é a
instrumentalização de um problema pandémico a nível mundial, no sentido de beneficiar
os interesses políticos e estratégicos de determinados Estados, aproveitando a
sua condição financeira superior. Especificamente em relação a Israel,
aparentemente esta situação poderá ter a vantagem de estar a aproximar o Estado
hebraico a países com quem tem tido, até agora, relações hostis. No entanto, os
objetivos que parecem estar na mente dos líderes israelitas fazem-nos sentir
que, para além de eticamente reprováveis, Israel poderá estar prestes a
reacender conflitos passados e a dificultar uma solução para o problema israelo-palestiniano
que tarda em ser resolvido.
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